segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Era uma vez uma máquina... Parte 7

Olá meu caro caríssimo, não pense que eu me esqueci de você.
Só precisava de um tempo para arrumar minhas ideias.
Pensar sobre meu passado e tentar colocá-los nessas minhas linhas tortas.



Bem, 1962 foi um ano marcante.
Como vocês podem imaginar.
Minha mãe não foi solta.
Mas não esperou o julgamento.
Se matou.
Ouvi dizer que morreu chamando pelo meu pai.
Ela já havia morrido há muito tempo, eu acho.

Eu não fui ao velório.
Na verdade, eu fui, mas não participei.
Fiquei ao longe, olhando como um telespectador, como se estivesse apenas andando por ali na hora do enterro.
Não tinha mais de 20 pessoas.
Colegas de trabalho.
Nunca perguntei no que minha mãe trabalhava.
Nunca me importei.
E depois disso, os anos voaram.

Em 1965, eu já era gerente do supermercado.
Controlava tudo.
Operadores de caixa, área administrativa, funcionários da limpeza.
Cuidava de tudo.
Mas não cuidava de mim.
Como eu disse, eu havia adotado a rua e a bebida como minha família e irmãos.
E assim eu vivi.
Ou tentei.

Voltando para casa, mancando mais do que o normal, como se não bastasse ser manco, ainda bebo.
Devo ser um bastardo mesmo.
Não vi o carro.
Simplesmente não o vi.
E ele me viu.
Tenho certeza.
Mas não conseguiu parar.
Eu só lembro do barulho.
E da dor, e que dor.
E depois a escuridão.

Não sei quanto tempo eu apaguei.
Só lembro que, quando eu acordei, ainda meio sonolento.
Senti algo estranho em minha perna.
Na verdade, eu não sentia minha perna direita.
A mais afetada pela polio.
Olhei para baixo e constatei.
A perna não estava mais lá.
Claro, entrei em desespero.
Clamei por ajuda, gritei por socorro e o socorro veio como um belo par de olhos mel, um cabelo castanho, bem claro, um corpo esguio e um sorriso lindo.
Tudo bem, na hora eu não prestei atenção em nada disso, só tentei ser poético.
Perdoe a minha falha.
Voltando à minha dor.
Eu perguntei o que havia acontecido.
Eu tinha polio, mancava, MAS AINDA TINHA UMA PERNA!
Lembro de ter gritado isso pra enfermeira.
Josy era o nome dela.
Lembro de ter visto no crachá.
E ela me contou.

O carro, a batida em si, não foi tão forte.
Se minha perna fosse perfeita, ou pelo menos, tão perfeita quanto é algo humano, ela teria aguentado, com uma fratura ou duas, mas aguentado.
Mas, por causa da polio, minha perna era meio definhada e não aguentou.
Nem a batida, nem o ralado depois que o carro passou por cima de mim.
Josy disse que, quando eu cheguei no hospital, não foi uma cena bonita de se ver.
O sangue escorria de minha perna.

Bom, resumindo...
Eu perdi uma perna.
Mas, com todo o dinheiro que eu vinha juntando, eu consegui uma prótese.
Na época, naquela época, era algo grotesco, bruto, mas, melhor do que ficar com aquele toco de perna.
Bom, nos 15 dias que eu fiquei internado do pós-cirurgia, até me acostumar a usar a prótese, Josy ficou ali comigo.
Às vezes vinha trocar as ataduras da cicatriz, outras vezes vinha só para conversar, aliviar a solidão
Acho que ela era também uma pessoa muito solitária.
Por isso nos entendíamos bem.
Nos sentiamos bem no silêncio.
Era confortável ficar ao lado dela.

Recebi alta.
Josy veio se despedir de mim.
Sempre achei que enfermeiros, médicos e pacientes tivessem aquele lance de não se envolverem emocionalmente um com o outro, mas acho que no nosso caso foi meio impossível.
Ela veio me dar tchau.
Me abraçou, desejou tudo de bom e saiu.. ou tentou sair.
Em algum momento de loucura minha, eu agarrei sua mão e a puxei pra perto.
Nunca soube escolher palavras bonitas.
Nunca soube falar coisas bonitas.
Apenas disse que eu adorava a cor dos seus olhos, o quão bonito era seu sorriso e o quão bem ela tinha me feito nesses 15 dias de internação hospitalar.
E depois soltei sua mão.
E ela me beijou.

Meu primeiro beijo.
Beijo de verdade.
Daqueles que fazem o ato valer a pena.
Eu já havia gasto um bom dinheiro com mulheres da vida.
Casas vermelhas.
Bórdeis em becos escuros.
Coisa suja.
Porca.
Mas nada se comparou à esse beijo com josy.

Ela me beijou.
E saiu.
Virou as costas e saiu.
A porta se fechou e eu fiquei ali.
Com minha prótese e meu silêncio.
No meio do meu silêncio e no fechar daquela porta, Josy some da minha vida.

E no meu silêncio, eu termino essa página.
Uma página com um pouco de romance creio eu.
No meio dessa história.

Calma caro caríssmo.
A história vai começar a se desenrolar.
Aos poucos.
Eu precisava comentar essa passagem.
Ela será importante, eu acho.
Pra mim foi importante.

Um comentário:

  1. Mano, seus textos são fodas, contos em versos, em versos rápidos, em versos secos, diretos, com altas doses poéticas. Gosto demais dessa série!

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